top of page
  • Foto do escritorMarcelo Smeets

O velho do canto do boteco


O canto onde ficava sua cadeira, no boteco do “seu” Afonso, era privilegiado. Todos sabiam que ali era seu espaço cativo. O homem de olhos azuis desgastados pelo tempo, de braços e canelas finos, e pele castigada pelo sol, acomodava-se na cadeira de madeira como se fosse seu trono, o local onde se colocava em vigilância sobre seu reino. Dali ele podia alcançar com a visão tanto o interior quanto o exterior do boteco.


O velho do canto do boteco unia as mãos e as colocava entre os joelhos, enquanto jogava um pouco o corpo para trás e para frente, como que tentando tornar a velha cadeira de madeira em cadeira de balanço. Com chapéu na cabeça, ele observa os jogadores de sinuca, seus copos de cerveja, conhaque ou cachaça salpicando a mesa de jogo, alguns bancos e o balcão. O álcool servia para tentar aliviar as tensões de passados amargos, futuros que não se concretizam e presentes ausentes de vida. As tacadas, ora toscas ora certeiras, eram entremeadas de desafios de jogadas, piadas sujas e consultas sobre a vida alheia, sempre acompanhadas das mais severas críticas: “Sabia que ela não prestava”, “Isso aí é um safado”, “Não quero passar nem perto desse molambo”.

Os fatigados olhos azuis do velho do canto do bar não observavam para criticar, julgar ou condenar. Interessava a ele os movimentos, as feições, a mistura de vozes ásperas, esganiçadas, embriagadas. Observava ele o vaivém dos copos, o giz transformado em pó pulverizando o chão depois de fazer seu trabalho na ponta dos tacos, o balé dos jogadores em suas jogadas. Ele aspirava os cheiros das variadas bebidas como quem se delicia com finos perfumes, que eram estragados pelos bafos nauseantes de alguns dos frequentadores do bar.

Também havia vida do lado de fora. O casal de namorados discutia por causa do olhar maroto que o rapaz teria dado para outra menina. Dois cães sem dono perscrutavam sacos de lixo à procura da sobra de alguém. Uma mãe passava sentindo o perfume do bebê em seu colo e sorrindo para si mesma. Uma senhora tentava vencer um imenso degrau de uma calçada, carregando o peso de sua sacola de compras.


Eram sorvidos todos os detalhes que os olhos do velho do canto do boteco podiam captar. Cada um deles com suas respectivas emoções, ou falta delas. Ele precisava se alimentar desses detalhes, pois passaram a ser sua vida. Uma vida que se perdera e que se consolava na vida dos outros, pois ele acreditava que são sempre os outros que alimentam nossa vida.

4 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page